Introdução ao dossiê – América Latina em seu labirinto: crise, restauração, resistência

Capa da revista

The Latin American labyrinth. Crisis, restoration, resistance

Por Daniele Benzi * e Alessandro Peregalli ** em Cadernos do Ceas. Revista crítica de humanidades

The Latin American labyrinth. Crisis, restoration, resistance

O labirinto latino-americano
No romance O General em seu labirinto, Gabriel García Marquez relata os últimos meses de quem supostamente é considerado o libertador da América Latina: Simón Bolívar. Supostamente, dizemos, porque na época das independências o conceito de América Latina ainda não existia, tendo surgido meio século depois, para contrastar o panamericanismo estadunidense. Mas também porque o projeto glorioso de Unidade continental de Bolívar logo chocou com a realidade fragmentada e pouco gloriosa de uma coleção de republiquetas oligárquicas excludentes e sem identidade nacional, dependentes e racistas. O Brasil, por outro lado, como bem se sabe, naquela época vivenciou outra história. Para evitar o desmembramento, as elites cariocas conseguiram com êxito estabelecer uma solução bastante singular, aquela da emancipação de uma colônia que durante uns setenta anos viraria um Império monárquico e escravocrata bem implantado no meio das Américas republicanas, mas olhando para a África e a Europa e depois os EUA. Talvez seja por isso que até o presente os brasileiros não conseguem decidir se querem ou não ser latino-americanos. E, da mesma forma, que os povos da América Latina pouco saibam e muita desconfiança sintam ainda acerca desse gigante, aparentemente “cheio de bonomia”, chamado Brasil.
O labirinto da América Latina começa assim com seu próprio nome. Pois ela não é um território cujos contornos geográficos, socioculturais e identitários sejam fixos e invariáveis. Nem muito menos homogêneos. Muito pelo contrário, América Latina sempre foi, e ainda é hoje, somente um projeto. E para alguns uma utopia. Como aquela de Eduardo Galeano, uma bússola para andar no labirinto de sua história, geografía e identidade heterogênea. Mas ela também é um enigma, de diferentes denominações e espaços desiguais. Além da América Latina há muitas outras definições sub-regionais, até chegar à noções evocativas como Pátria Grande, Nuestra América, Abya Ayala e Afro-América. Quantos projetos, utopias e enigmas encaixam nestes diferentes espaços e denominações? Nas últimas décadas, com a irrupção do chamado “ciclo progressista”, uma confusão adicional gerou-se entre o projeto latino-americano e a centralidade da América do Sul como espaço geopolítico percebido como autônomo (ver a contribuição de Baptista, Cruz e Klovrza neste dossiê). É uma visão problemática, da qual no entanto nosso dossiê não escapa. Como não escapa da perspetiva do nacionalismo metodológico, o caminho mais seguro de pensar no Estado-nação como a unidade de análise mais efetiva e pertinente para a pesquisa. Um caminho, porém, que não temos certeza de que seja o único ou sequer o melhor para avançar na compreensão e construção do projeto-utopia-enigma regional América Latina.
Na última página do romance de García Marquez, um impossível Libertador, desacompanhado, doente, abalado, nada heroico, suspira: “Carajos! Como vou sair deste labirinto?”. Quase dois séculos depois, essa segue sendo a pergunta do projeto-utopia-enigma da região América Latina. O pensamento crítico latino-americano há cem anos reflete e luta para a América Latina sair do seu labirinto. Trabalhando nesta tradição, nós sugerimos que na longa duração se observam pelo menos três fios distintos, três padrões relativamente autônomos mas estruturalmente encadeados que produzem e reproduzem o labirinto latino-americano.
O primeiro fio corresponde à posição da região na economia mundial a partir do longo século XVI, isto é, desde o nascimento do capitalismo como um sistema-mundo que paulatinamente se tornaria global. A inserção subordinada nele, desde a época da independência, iria configurando um padrão de dependência histórico-estrutural1. Ao longo de boa parte do século XX, a saída do labirinto, reformista ou revolucionária, civil ou militar, foi buscada no “desenvolvimento nacional”, em outras palavras, na industrialização, frequentemente mas nem sempre acompanhada de políticas externas mais autônomas dos poderes hegemônicos, e em parte na integração regional. As janelas revolucionárias abertas em diferentes países e conjunturas, desde Cuba ao Chile e à Nicarágua, por vezes desafiaram não só a ordem oligárquica, mas os próprios constrangimentos e contradições do nacional desenvolvimentismo. No entanto, a reação das classes dominantes e do imperialismo, com exceção de Cuba, terminaria impondo soluções conservadoras ou autoritárias, ou melhor, acabaria reestabelecendo, em formas sempre renovadas, os termos fundamentais do pacto neocolonial, na definição clássica de Halperin Donghi (2010[1969]), ou seja, da dependência histórico-estrutural.
América Latina não sai ainda do labirinto do desenvolvimento, e enquanto alguns se esforçam obstinadamente em persegui-lo, outros lutam e resistem, de acordo com Quijano (2000), contra seu fantasma. “Carajos!”, suspiraria Simón Bolívar.
O segundo fio do labirinto corresponde à natureza das relações dos Estados latino-americanos com as respectivas sociedades civis, em sentido gramsciano. Ainda que existam diferenças relevantes, quando consideramos a América Latina como uma região mundial numa perspectiva de longa duração, percebe-se a recorrência de uma espécie de padrão cíclico, ou pêndulo, entre formas híbridas destas relações de tipo oligárquico, nacional-populista e autoritário.
Por este ângulo, as experiências de implantação da democracia política liberal na década de 1990 revelaram-se muito precárias e fracassaram, finalmente, devido à associação visceral com o neoliberalismo econômico e social, isto é, uma forma neoligárquica de governo antitética à democracia ainda que, dependendo do país, tenha apresentado avanços relativamente significativos em termos de direitos políticos e em menor grau civis. No entanto, a despeito dos disfarces de participação cidadã e multicultural, a ficção democrática neoliberal não pôde lidar com a desigualdade e a exclusão social, de gênero, étnica e racial primordial e persistente nas sociedades latino-americanas. Desta forma, nestas condições “a América é ingovernável para nós”, suspiraria novamente o libertador.
O terceiro fio do nosso labirinto refere-se precisamente às relações sociais e intersubjetivas sob o padrão que na década de 1960 Pablo González Casanova (1968) teorizou como colonialismo interno, e logo foi ampliado por Aníbal Quijano (2014) na abrangente perspectiva da colonialidade do poder. Talvez Bolívar seria hesitante neste caso, ambíguo ou confuso. “Somos uma pequena raça humana”, disse alguma vez. Sem embargo, como a maioria dos homens brancos e mestiços, caudilhos e da elite, ele estaria secretamente preocupado em perder seus privilégios inatos de status, isto é, de linhagem, de cor e de macho.
Em nossa opinião, a compreensão das interconexões, articulações e até determinações mútuas entre os três fios do labirinto latino-americano segue sendo o maior desafio do pensamento crítico regional no século XXI, especialmente no contexto atual de crise global do sistema mundial2. Ela poderia resultar útil para interpretar na longa duração a conjuntura de distintos países, como no caso das contribuições para esse dossiê, mas também para decifrar a América Latina como um todo, uma região mundial, um projeto, um enigma e uma utopia para sair do labirinto.

Crise
Perry Anderson (2016) escrevia pouco antes do impeachment de Dilma Rousseff que no início do século XXI a América do Sul “foi a única parte do mundo em que movimentos sociais rebeldes coexistiram com governos heterodoxos”. O historiador britânico qualificava a região como uma exceção global, “sem a pressão direta dos Estados Unidos, fortalecida pelo boom das commodities, e amparada em grandes reservas de tradição popular”. Porém, em 2016 essa exceção estava “chegando ao seu fim e sem nenhum sinal de mudança positiva no horizonte”. A crise, no subtítulo do dossiê, refere-se em boa medida àquela que um dos autores deste dossië tem definido “a onda progressista sul-americana” (Santos 2018). A política econômica e de inserção internacional destes governos frequentemente tem sido caracterizada de neodesenvolvimentista. Numa conjuntura de bonança e lucros extraordinários, agregou-se frações menores de grupos capitalistas nacionais e estrangeiros que operam na região, assim como sindicatos e várias camadas de setores médios e populares beneficiadas pelas políticas sociais. No entanto, conforme descrição de Armando Boito Jr. (2018) para o Brasil, o neodesenvolvimentismo realmente existente não foi além de reeditar algumas políticas desenvolvimentistas no contexto do capitalismo neoliberal financeirizado (ver também a contribuição de Santos ao dossiê). Aliás, embora postulasse uma retomada da industrialização, esta última não foi pensada em contraste à oligarquia exportadora e latifundiária, como aconteceu no caso do desenvolvimentismo da CEPAL, mas em aliança com ela, sendo de fato o agronegócio, e não a manufatura, o seu foco principal (Katz 2015, ver também ver a contribuição de Cavalcante ao dossië). Com efeito, excetuando a Venezuela bolivariana na época de Chávez, nenhum governo se afastou completamente do padrão neoliberal, seja pelas alianças feitas ou pela própria adesão a certos elementos programáticos do neoliberalismo. O caráter “pós-neoliberal” do progressismo, como mostrou Beatriz Stolowicz (2016), evidenciou uma ambigüidade substancial: entendeu-se o neoliberalismo a partir de uma concepção simplista, como monetarismo do laissez-faire, ou seja, unicamente como uma ideologia e uma política destrutiva e privatizadora. Não obstante, o neoliberalismo é também uma lógica, ou melhor, uma forma de governar cujo objetivo é a produção de uma nova ordem social, institucional e inter-subjetiva e não só econômica, enfim, uma nova “razão do mundo” nas palavras de Dardot e Laval (2016, ver também a contribuição de Santos e de Cruz e Pietzack ao dossiê). Além do mais, vários países da região, que não vivenciaram a chegada ao governo de forças políticas de esquerda, mantiveram o “modelo” praticamente intacto, o que resultou em dificuldades insuperáveis para a consolidação de políticas de integração e de um regionalismo realmente pós-liberal.
O híbrido neodesenvolvimentista trouxe primeiramente um afastamento e em seguida um embate entre governos progressistas e movimentos sociais rebeldes, na caracterização de Perry Anderson. Referimo-nos em particular aos partidários do bem-viver – Sumak Kawsay e Suma Qamaña nas línguas quechua e aymara. Movimentos que denunciam o impasse civilizatório inerente ao dilema entre a necessidade de crescimento econômico e o imperativo humano e ecológico de proteger as minorias e a natureza contra o paradigma modernizador e de acumulação sem fim de capital. Destarte, a coexistência tensa virou guerra aberta no final do super ciclo das commodities. Quando o boom acabou, entre 2014 e
2015, a maioria dos governos progressistas já tinha fracassado no projeto de reformar o padrão de acumulação neoliberal, em especial no caso daqueles países afetados pelo fenômeno do “rentismo” petroleiro ou de outros recursos (ver as contribuições ao dossiê de Sutherland; Alarcón e Peters; De Ambroggi). Enquanto isso, as elites dos EUA mostraram toda sua sede de vingança contra a rebelião no quintal dos fundos e uma preocupação crescente, não tanto pelo “fantasma da Gran Venezuela” (Terán 2014) ou pelo “reformismo fraco” do PT (Singer 2012), mas pelos interesses geoestratégicos e econômicos russos e chineses na região.
No que se refere às relações entre Estado e sociedade, em geral compartilhamos a caracterização dos governos progressistas como a reiteração, no começo do século XXI, de alguma variante do nacional populismo de esquerda. O estilo de liderança, o discurso antioligárquico, a concepção das relações entre Estado e sociedade civil, particularmente no tocante ao mundo do trabalho e às camadas mais pobres, combina com essa tradição latino-americana (ver contribuição de Sutherland neste dossiê). No entanto, é importante salientar que, de acordo com a interpretação de Massimo Modonesi (2017), os projetos progressistas se tornaram também uma espécie de “revoluções passivas” de tipo gramsciano ou, para retomar Florestan Fernandes (1974), de tentativas de “revoluções dentro da ordem”. Converteram-se, em outras palavras, em projetos reformistas de cima para baixo (um reformismo radical talvez no caso da Venezuela), de reestabelecimento e gestão da ordem social após a crise da governabilidade neoliberal, objetivando a modernização do capitalismo regional a partir de uma maior participação do Estado na economia e na sociedade3. No entanto, na esteira da crise mundial de 2008, que golpearia severamente a região somente a partir de 2013, o que qualificamos de pêndulo oligárquico-populista-autoritário nas relações entre Estados e sociedade civil, começaria a tender ou ao autoritarismo (Venezuela, Bolívia, Equador e Nicaragua) ou à oligarquia (Argentina, Brasil e Uruguai), até mesmo no final do ciclo progressista. Outro aspecto importante é a arremetida retórica dos governos progressistas contra a colonialidade do poder. Na Venezuela, no Equador e na Bolívia o caráter não colonial do Estado foi constitucionalizado e afirmou-se a plurinacionalidade. No Brasil, a política de cotas procurou balizar a exclusão histórica de amplos setores da população afrodescendente. No entanto, o caso mais interessante talvez seja o da Bolívia, único país na região em que algumas frações das camadas majoritárias da sociedade quechua e aymara conquistaram o governo, isto é, se tornaram Estado (ver a contribuição de De Ambroggi ao dossiê). Todavia, em todos esses casos a crítica à colonialidade, aliás bastante limitada no tocante aos temas de gênero, foi acompanhada invariavelmente de um acalorado discurso modernizador para legitimar as políticas extrativistas e de despossessão contra os povos originários e afrodescendentes, com consequências ainda mais prejudiciais para a autonomia das mulheres (Svampa 2017). Neste sentido, é possível evidenciar uma defasagem considerável entre o discurso oficial contra a colonialidade, bem como as pretensões de descolonização ontológica e epistemológica disseminadas no âmbito acadêmico, e sua influência bastante modesta nas relações sociais da vida cotidiana, para além das reações cada vez mais hostis não só das elites mas também de importantes setores de classe média e também de camadas populares.

Restauração
Após uma década de prosperidade e estabilidade relativa, a América Latina foi abalada mais uma vez por graves reveses políticos e econômicos, golpes de Estado e crises institucionais. Depois da ilusória ordem progressista viria a restauração, como proclamaram os líderes e intelectuais orgânicos do progressismo, ou melhor, a desordem e o caos. De fato, se é possível falar de restauração, neste momento esta apresenta vários rostos e nenhuma direção, visível ou invisível, exceto nas teorias conspirativas. Seguindo a metáfora do labirinto, a restauração do padrão de acumulação e inserção regional na economia mundial tem a ver com o retorno de governos associados ao imperialismo estadunidense favoráveis ao modelo de globalização neoliberal. No entanto, não se trata de restauração de um padrão de acumulação que tinha sido transformado, mas de alianças geopolíticas e ideológicas e de estilos de exploração. A globalização neoliberal, contudo, entendida como o projeto de restabelecimento da hegemonia mundial dos EUA ameaçada na turbulenta década de 1970, estava já estancada desde o começo do século e, simbolicamente, acabou com a bancarrota de Lehman Brothers em 2008. A chegada de Donald Trump à Casa Branca imprimiu mais um giro à crise terminal da hegemonia estadunidense. Neste momento é difícil imaginar como o retorno do Partido Democrata poderia inverter a situação. É isso que não logrou compreender o governo de Macri na Argentina, que foi o protótipo clássico de restauração neoliberal, aliás levando novamente seu país à catástrofe nacional (ver a contribuição de Clemente ao dossiê). No entanto, embora as elites e vários governos latino-americanos estejam associados por convicção, e não simplesmente pela submissão, ao imperialismo estadunidense, as economias da região já estão ligadas de forma bastante profunda à China. Trata-se de uma ligação subordinada e dependente, sem dúvida, porém ela é distinta do padrão clássico de dependência colonial e neocolonial. A caracterização e análise crítica desse novo padrão provavelmente constitui o maior desafio para o renovado pensamento dependentista (Katz 2018, ver também a contribuição de Cruz e Pietzack ao dossiê). Mas também para refletir sobre as fissuras no padrão de dependência histórico-estrutural delineado por Quijano (2014) numa perspectiva histórica de longa duração. Entretanto, a maior inquietação no presente é a região se tornar uma zona de sacrifício e depredação no caótico contexto geopolítico multipolar e de rivalidades interimperialistas em curso. Isso marca uma diferença notável com a década de 1930, quando o desmoronamento da ordem mundial britânica abriu importantes oportunidades para a industrialização e a inclusão social em distintos países. O paradoxo é que tanto o governo de extrema direita no Brasil quanto o supostamente socialista da Venezuela são os que mais estão contribuindo para este pesadelo. Efetivamente, é paradoxal sugerir elementos comuns entre a situação atual do Brasil e aquela da Venezuela. No entanto, em ambos os casos tratam-se de governos militares ou ao menos legitimados e controlados diretamente pelo poder militar. Em ambos os países, durante o auge do ciclo progressista, se puseram em marcha e até tiveram certo êxito alguns projetos para eles se tornar referência e exemplos positivos de uma nova América Latina, através dos quais buscou-se exercer a liderança regional (ver a contribuição de Baptista, Cruz e Klovrza ao dossiê), enquanto hoje converteram-se, na verdade, em referências extremamente negativas em todo o mundo, severamente afetados, além da crise econômica, por perigosas dinâmicas de desinstitucionalização (ver as contribuições de Santos, Cavalcante e Sutherland neste dossiê). O filósofo Paulo Arantes (2020) assemelhou o papel do Estado atual ao crime organizado: um sujeito militarizado que ocupa um território, extrai recursos obrigando seus habitantes a pagar a proteção de um perigo que ele mesmo representa. No caso do governo brasileiro, esse papel está ligado diretamente à emergência mundial de uma ultradireita xenófoba e com traços neofascistas, desde Hungria até Filipinas, passando pelos Estados Unidos, a Turquia e a Índia. Porém, as opções mais extremas, pelo menos até o momento, não prosperaram na América Latina, como demostra o fracasso da consolidação do golpe na Bolívia. Em todo caso, não deixa de ser chamativo o recrudescimento dos traços da colonialidade na totalidade dos países da região, agora não só de forma disfarçada em práticas de despossessão supostamente em prol da “ordem” e do “progresso”, mas também no ressurgimento de um discurso racista e patriarcal explícito e violento. Outros Estados atravessam uma fase bastante confusa de desarticulação ou rearticulação. A crise de legitimidade de governos e sistemas políticos tornou-se mais aguda na Colômbia, Peru e Equador, alcançando no Chile o limiar de uma crise orgânica (ver a contribuição de De Guio e Peregalli ao dossiê). A inversão conservadora do Uruguai se contrapõe à instauração de um progressismo tardio no México e à reconstituição peronista na Argentina (ver as contribuições ao dossiê de Baráibar e Clemente). Se a situação é incerta, a possibilidade de recomposição de um progressismo de alcance regional em todo caso existe. A questão é se essa seria a única saída possível à esquerda.

Resistência
Tudo indica que depois da crise dos governos progressistas, em vez consolidarmos um cenário (geo)político regional de restauração, ainda que de cunho neoliberal, conservador ou mesmo com matizes neofascistas em alguns países, estamos diante de uma situação bastante caótica, de transição talvez mas de horizonte incerto, cujas características em comum entre os diferentes países condensam-se na grave crise econômica e social, acompanhada por governos cada vez mais deslegitimados e questionados em diferentes formas e perspectivas de resistência social. Alinhados à tendência global, desde meados de 2019 os protestos de massa irromperam novamente no cenário latino-americano, e foi atingido um limiar crítico após a eclosão de rebeliões e até insurreições em vários países da região. Também acompanhando a tendência mundial, esses levantes tiveram gatilhos diferentes caso por caso, desde uma resposta a medidas de austeridade até protestos de viés mais político. Em alguns casos, como no Haiti e em Honduras, colocaram-se no âmbito de rebeliões e crises de longo prazo, como resposta a uma sequência de fraudes e golpes de Estado e a processos neocoloniais de intensidade assustadora, que levaram esses países aos índices regionais máximos de repressão política e narco-paramilitar, miséria extrema e migrações em massa. Uma situação de crise política e social tem afetado desde final de 2019 tanto países ainda governados por governos de esquerda, como a Bolívia, como lugares que nunca foram atingidos pela onda progressista, como o Chile, a Colômbia e, nas horas em que escrevemos esse texto, o Peru, bem como países onde o progressismo tinha sido substituído de diversas maneiras por governos que passaram a aplicar políticas de austeridade semelhantes às dos anos 90, como no Equador e na Argentina, sendo essa última não atravessada por um levante social destituinte mas sim por um biênio de acúmulo de resistências populares que levaram a uma nova vitória eleitoral progressista (ver Clemente neste dossiê). A resposta dos governos, em todos os casos, alcançou níveis alarmantes de repressão e violações aos direitos humanos.
A Bolívia é talvez o caso mais emblemático de uma situação onde crise, restauração e resistência se desenrolaram aceleradamente em menos de um ano, a partir da revolta heterogênea contra a reeleição do Evo Morales, passando por um golpe de Estado cívico- militar-policial, massacres de civis, um governo de transição que tentou permanecer no poder, desembocando, enfim, em uma nova resistência popular e a eleição de um novo governo do Movimento ao Socialismo (ver a contribuição de De Ambroggi neste dossiê). Uma reeleição que, entretanto, se configura como uma variante ao mesmo tempo aparentemente mais aberta à influência dos movimentos sociais e mais constrangida à moderação por uma
situação de crise política, econômica e pandêmica inédita. No Equador, a virada conservadora já estava em curso desde o interior do próprio bloco progressista no poder, com o afastamento do herdeiro de Rafael Correa, Lenin Moreno, do já precário e contraditório sendeiro do seu antecessor (ver a contribuição de Alarcón e Peters ao dossiê). A eclosão social, neste caso, surgiu em resposta a um aumento do preço dos combustíveis, por sua vez decretado para atender ao compromisso feito pelo governo com o Fundo Monetário Internacional. O chamado estallido social foi protagonizado por camadas subproletárias urbanas, estudantes e pela CONAIE, e não derivou na reabilitação imediata das forças correistas, cuja ruptura com o movimento indígena está longe de se recompor, depois das políticas extrativistas e repressivas realizadas no período de Correa (Iza, Tapia e Madrid 2020).
Embora nos países onde os governos de esquerda ou centroesquerda deixaram seu rastro a situação pareça se desenvolver de maneira profundamente contraditória, naqueles que ficaram afastados do chamado “ciclo progressista” a confrontação social parece mais linear, porém, não mais próxima de ser resolvida. É o caso da Colômbia, um país onde há muitas décadas a guerra tem se desenvolvido como forma “pura” de governo, mas que desde o ano passado vem sendo atravessada por uma eclosão social inédita, que tem desafiado o regime do medo imperante.
E é o caso, sobretudo, do Chile, a referência reconhecida na região pela aplicação irrestrita e supostamente mais exitosa do modelo neoliberal. A rebelião neste país a partir do outubro de 2019 tornou-se um verdadeiro terremoto político, chegando a colocar na defensiva as classes dominantes mais sólidas do continente e a institucionalidade neoliberal no próprio arranjo constitucional. Apesar de ter irrompido de forma potente e imprevisível, a rebelião eclodiu após uma década de fortalecimento de múltiplas lutas, daquelas dos estudantes para um ensino público e gratuito às resistências territoriais contra o extrativismo, do movimento contra o sistema da previdência privado até as feministas e novos movimentos de trabalhadores, protagonistas de muitas greves ilegais apesar da cooptação
sindical. A insurreição chilena tem conseguido desafiar e derrotar a constituição herdada do regime de Pinochet, mas não é claro até que ponto conseguirá transcender o novo processo constituinte desenhado pelo Parlamento e abrir perspectivas de superação do neoliberalismo real (ver a contribuição de De Guio e Peregalli neste dossiê).
Esses cenários de rebelião estão nos apresentando uma heterogeneidade de lutas, demandas e questionamentos populares que atravessa com força todos os três elos do labirinto latino-americano. No entanto, quando comparamos a situação atual àquela de vinte anos atrás, as esquerdas parecem mais fragmentadas e seus posicionamentos contraditórios no que diz respeito às possíveis saídas desse labirinto. Ademais, como assinala Katz (2020), com a exceção dos movimentos feministas e ambientalistas, as mobilizações atuais não tem horizontes e agendas regionais nem globais. O internacionalismo do FSM do “outro mundo possível” caiu junto com a globalização neoliberal, provavelmente porque não soube ou pôde caminhar em conjunto com a conjuntura global iniciada em 2011 com a Primavera Árabe. O perigo atual é o desgaste num momento de oportunidades e renovadas energias. Como sempre, há expectativa e esperança de forjar, no calor das lutas e na política dos eventos, novas subjetividades, novas solidariedades, novas pulsões de vida e emancipação e novas formas de organização (Terán 2020). Porém, em um momento altamente volátil e contingente, a falta de transformação da raiva e esperança que está emergindo em um projeto político relativamente viável e renovado pode conduzir a uma rua do labirinto sem saída. “Aquele que serve a uma revolução ara o mar?”, lamentaria novamente o General.
Enquanto isso, nos últimos meses o planeta inteiro foi atingido por uma pandemia que, antes mesmo de descarregar todos os seus efeitos em termos de vidas humanas, está submergindo o sistema-mundo capitalista em uma nova etapa da crise sistêmica. Isso está produzindo efeitos de aceleração de tendências já em curso, seja de súbitas mudanças de rumo. No curto e médio prazo, porém, não há indícios de mudanças de rumo na situação da América Latina no que diz respeito a sua posição no sistema-mundo. A região é a mais atingida pelos estragos da pandemia (ver a contribuições de Idárraga e Cunha e de Baráibar neste dossiê), e por uma crise econômica sem precedentes. No entanto, há uma aparente indisponibilidade das classes dominantes em fazer sequer as mínimas concessões na redistribuição da riqueza social, o que afasta as possibilidades de uma reedição da conciliação de classes mesmo se despontar um novo boom das matérias primas. A saída do labirinto latino-americano está, provavelmente, em outro lugar, e só o desenlace das lutas e rebeliões dos últimos meses nos dirá quais são as margens para imaginá-la, determiná-la e até mesmo inventá-la. Seria possível que tenhamos chegado ao momento de “crise terminal” do capitalismo do qual nos falou Immanuel Wallerstein [2013]2015, cujo desdobramento seria ou um novo pacto social mais justo ou um sistema de roubo e devastação social ainda mais atroz? Com certeza é hora de puxar o freio de mão quando a história nos empurra para o colapso, parafraseando Walter Benjamin.

Notas

  • Daniele Benzi é Doutor em Ciência, Tecnologia e Sociedade pela Università della Calabria (UNICAL) e mestre em Estudos Latino-Americanos pela Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM). Professor visitante do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal da Bahia. Foi professor da Benemerita Universidad Autónoma de Puebla (BUAP), da Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (FLACSO-Equador), da Universidad Central del Ecuador (UCE) e da Universidad Andina Simón Bolívar (UASB sede Quito). Tem publicações em livros coletivos e revistas especializadas sobre regionalismo, processos políticos e pensamento crítico latino-americano a partir de uma abordagem de Economia Política Global.
    Autor do livro ALBA-TCP. Anatomia de la integración que no fue (UASB-Imago Mundi, 2017).
    ** Alessandro Peregalli é Doutor em Estudos Latino-Americanos pela Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM) e Mestre em Ciências Históricas pela Università di Bologna (UNIBO). Foi professor de História Econômica pela Escuela Nacional de Antropología e Historia (ENAH), na Cidade do México, e é membro do Grupo de Trabalho “Territorios en disputa e r-existencia” do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO). Tem publicações em livros coletivos e revistas especializadas sobre infraestrutura logística, território e integração regional latino-americana a partir da perspetiva teórica dos chamados Critical Logistics Studies.

1 Com dependência histórico-estrutural nos referimos à elaboração desse conceito na obra de Aníbal Quijano (2014).

2 Tráta-se, em outras palavras, da continuação de uma orientação que foi paradigmática entre os autores clássicos da teoria social latino-americana. Da mesma forma, os três fios apontados correspondem, fundamentalmente, aos debates sugeridos por Maristella Svampa (2018).

3 Neste sentido, ao contrário das interpretações à la Chantal Mouffe e Ernesto Laclau ([1987]2015.) sobre o populismo de esquerda, estamos interessados em enfatizar o caráter histórico-estrutural de certos padrões de recorrência nas experiências nacional-populistas latino-americanas. Efetivamente, à luz destas
experiências, parece-nos bastante pertinente resgatar uma reflexão de Aníbal Quijano de 1993: “Cuando no hay otra manera de sortear la presión de los trabajadores y de todos los sectores dominados de la población contra la inequidad del reparto de los bienes sociales, los regímenes llamados ‘nacionalistas-populistas’ se han refugiado siempre en políticas de distribución de ingresos, sin poder o sin querer una redistribución del control de recursos económicos y de ciudadanía. Dadas esas condiciones, tales políticas han sido siempre, inevitablemente, artificiales y de corto alcance y duración. Pero, mucho peor, en todos los casos se ha
revelado que resulta virtualmente impensable para las clases dominantes asentadas en la colonialidad y para sus alianzas imperialistas ceder a esa redistribución de ingresos, porque eso implicaría poner en cuestión las bases de ese poder. Por eso, todos los regímenes llamados ‘populistas’ han caído, sin excepción alguna, bajo
los golpes militares sangrientos y represivos” (2014: 211 [1993]). Essa consideração de Quijano se aplica mutatis mutandis ao progressismo, com a notável diferença, porém, do desafio atual para caracterizar o fenômeno do neo-golpismo (Silva 2020; ver também neste dossiê as contribuições de Sutherland e Clemente).

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