A valorização da escuta na etnografia de Raúl Zecca Castel

A antropologia diz respeito aos seres humanos, às pessoas. E não devemos errar ao considerar essas vidas como um “objeto de pesquisa”.

por Arnaldo Cardoso, especial para o Jornal GGN

Há dez anos não se podia antever quão fértil seria a primeira viagem do jovem antropólogo italiano Raúl Zecca Castel (Milão, 1985) à República Dominicana, para uma pesquisa de campo junto aos “migrantes haitianos que, ao chegarem ao país vizinho na ilha de Hispaniola eram, e ainda hoje são levados para o interior, onde serão explorados como trabalhadores agrícolas nos canaviais e confinados nos bateyes, aglomerados de barracos que levam o nome de um termo de origem taína referindo-se ao ‘lugar onde os indígenas jogavam’, mas que hoje indica aquelas comunidades de herança colonial inicialmente concebidas como medidas de contenção para esses trabalhadores, em sua maioria homens e irregulares, portanto obrigados a não saírem do perímetro, para não correr o risco de serem pegos pela polícia e deportados”.

Dois anos depois seria publicado “Come schiavi in libertà” (Edizioni Arcoiris, 2015) com os resultados de sua pesquisa. Depois vieram “Mujeres. Frammenti di vita dal cuore dei Caraibi” (Edizioni Arcoiris, 2020), a tradução de “Chapeo” (Edizioni Arcoiris, 2022) de Johan Mijail e a recentíssima publicação de “Mastico y trago. Donne, famiglia e amore in um batey dominicano” (Editpress, 2023).

Raúl, que nos concedeu a entrevista abaixo, vive em Milão e mantém estudos com foco em migração e escravidão contemporânea, a partir de sua experiência com a presença haitiana na República Dominicana. É professor de Antropologia Visual na Academia de Belas Artes de Santa Giulia de Brescia e de História Social da Mídia, na Universidade de Milão.

Seu interesse pela América Latina antecede suas pesquisas acadêmicas no Caribe. Sempre acompanhou com admiração e se envolveu desde muito jovem com o trabalho de seu pai, o respeitado documentarista Adriano Zecca que tem entre seus muitos trabalhos para a RAI – canal de televisão estatal italiana – e outras emissoras, documentários sobre realidades da Guatemala, Peru, Bolívia e Brasil, deste último, vão de entrevistas com o então jovem sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva, na década de 1980, até o recente “L’Angelo dela Strada” sobre o trabalho social do padre Júlio Lancellotti. Em 2021 o documentarista recebeu o prêmio de melhor documentário no Nepal International Film Festival (NIFF) com “Ritorno all’eden perduto” que retrata o retorno de Adriano Zecca – desta vez com sua família – ao encontro do povo Mentawai, na ilha de Siberut, na Indonésia. A viagem original e respectivo documentário ocorreu em 1969.

Segue principais trechos da entrevista originalmente feita em italiano, abaixo em tradução livre.

Arnaldo Cardoso – Dos desastres ambientais provocados nos últimos anos por grandes corporações mineradoras nacionais e internacionais operantes no Brasil às atividades do garimpo ilegal em terras indígenas, essas realidades tem demandado medidas políticas e policiais e provocado vivo debate no país.

Em seu artigo de janeiro de 2019 no El País, você relatou a complexa realidade da exploração de ouro na mina Pueblo Viejo, na província de Sánchez Ramírez, República Dominicana. Se para alguns a mina é vista como um “monstro” ameaçando a vida de comunidades inteiras, para outros é vista como fonte de emprego e desenvolvimento.

Você acredita que uma maior divulgação dos fatos a partir da perspectiva dos mais prejudicados nesses empreendimentos extrativistas e de outras realidades de exploração em países do Sul Global, pode contribuir para uma mudança positiva nas correlações de forças existentes, portanto no enfrentamento desses problemas?

Raúl Zecca Castel – A mina Pueblo Viejo, administrada pela multinacional canadense Barrick Gold, é uma das maiores minas a céu aberto do mundo. Decidi visitar as comunidades próximas e ouvir a voz dos moradores porque me interessava entender o impacto que uma empresa extrativista desse porte poderia gerar na vida das pessoas e no meio ambiente. Fiquei muito impressionado com a dupla narrativa que envolve este colosso: de um lado, associações e movimentos familiares que denunciam os efeitos desastrosos na saúde, na contaminação das águas e dos campos cultivados; do outro muitas vozes que apoiam a mineradora porque ela traz empregos e desenvolvimento. É difícil estabelecer a verdade, especialmente na ausência de um Estado forte/eficiente que possa fazer uso de monitoramento imparcial, mas o que é certo é que a presença da mina é altamente divisiva e cria tensões violentas nas comunidades locais. A própria Barrick Gold, que tem operações de mineração em muitos outros países, tem má reputação e esteve envolvida em desastres ecológicos e violência. Se é verdade que a empresa gasta muito em projetos de apoio às comunidades, por exemplo trazendo serviços como eletricidade ou programas de alfabetização, também é verdade que estamos cada vez mais habituados às chamadas operações de greenwashing, onde por trás destas ações se escondem muitos outros interesses e, sobretudo, responsabilidades. Sem dúvida, ouvir as vozes daqueles que são diretamente afetados pela presença da mina e pelas operações de extração é essencial, sobretudo, para entender a perspectiva de quem lida diariamente com essas realidades. Acredito que só a partir de uma compreensão “empática”, de dentro, é possível imaginar e implementar uma mudança.

AC – O antropólogo francês Bruce Albert que recentemente lançou um segundo livro em parceria com o xamã yanomami Davi Kopenawa relatou em recente entrevista que os cânones científicos que regem a produção acadêmica, inclusive na Antropologia, ainda representam dificuldades para a integração dos achados da pesquisa etnográfica, das falas dos sujeitos das comunidades estudadas, com a teoria clássica. Você enfrentou problemas desse tipo para apresentar à academia os resultados de suas pesquisas de campo?

RZC – Concordo com Bruce Albert acerca dessa dificuldade. A antropologia nasceu como conhecimento positivista no contexto científico ocidental e carrega todo o peso disso. Ainda hoje, apesar da viragem interpretativa e reflexiva que marcou a disciplina, persiste uma espécie de ambição naturalista, pelo que não podemos negar certas resistências académicas no que diz respeito ao tema da restituição etnográfica. Referindo-me à minha experiência pessoal, por exemplo, procuro sempre manter uma espécie de duplo registro: académico, para responder às necessidades da comunidade científica, e popular, para dialogar com não especialistas e, sobretudo, para realmente “devolver” os resultados da pesquisa àqueles que a tornaram possível, os interlocutores de campo. Assim nasceu “Mujeres, Fragments of life from the heart of the Caribbean”, um livro puramente etnográfico, porque recolhe os testemunhos diretos de sete mulheres com quem tive a oportunidade de conversar longamente durante a minha última estadia na República Dominicana, e é um livro no qual,  como antropólogo não atuo como um filtro em relação a essas histórias, mas ao mesmo tempo é um livro que acredito que teria sido impossível de fazer sem uma abordagem antropológica; uma abordagem que me permitiu acessar as histórias de vida dessas mulheres. Finalmente, histórias que retornei materialmente aos protagonistas, já que o livro também foi publicado na edição dominicana. Por outro lado, tive que sistematizar e teorizar os resultados dessa mesma pesquisa em um volume de cunho científico-acadêmico, sacrificando a maioria das vozes diretas, para alimentar o debate sobre os estudos de gênero. E assim nasceu “Mastico y trago. Mulheres, família e amor em um batey dominicano”, que acaba de ser publicado pela Editpress.

AC – Conte-nos um pouco mais sobre o processo de investigação para a realização de “Mastico y trago. Donne, famiglia e amore in un batey dominicano”.

RZC – Esta pesquisa e este livro não teriam sido possíveis sem a experiência de campo anterior alcançada em 2013, quando estive em várias comunidades dominicanas para investigar as condições de vida e trabalho dos trabalhadores empregados nas plantações de cana-de-açúcar. Naquela ocasião, o objeto de minha pesquisa era as condições de trabalho dos migrantes haitianos e assim passei meu tempo nas plantações, acompanhando os trabalhadores em sua luta diária pela sobrevivência. A monografia resultante (“Como escravos em liberdade”) expressou assim apenas o ponto de vista dos homens, negligenciando completamente o componente feminino. Daí a urgência de voltar ao campo para inverter a perspectiva de investigação, dedicando a pesquisa à vida das mulheres da comunidade. Então, compartilhei meu dia a dia com elas, passando dias inteiros em sua companhia, conversando e participando de todas as atividades em que estavam envolvidas. Isto permitiu-me aceder à dimensão mais íntima e privada das suas vidas, mas acima de tudo criar um diálogo mútuo, onde até a minha intimidade e a minha vida privada foram fundamentais para construir uma relação de confiança que, para além da relação de investigação, marcou o nascimento de verdadeiras amizades. A especificidade da antropologia é que ela diz respeito aos seres humanos, às pessoas, às vidas. Acho que nunca devemos cometer o erro de considerar essas vidas como um “objeto de pesquisa”.

AC – Sobre a publicação do livro “A queda do céu” (2010) em parceria com o xamã yanomami Davi Kopenawa, o antropólogo francês Bruce Albert declarou “O que me guia é o desejo de restituir a palavra dos yanomamis”. Muitos trabalhos recentes com comunidades e indivíduos silenciados por processos de exploração e opressão tem invocado a ideia de uma justiça restaurativa, que restitui direitos alienados, repara, restaura. Sentimento semelhante te motivou para a escrita de seu livro “Mujeres”?

Não diria “restituir”, tal como não gosto da expressão “dar voz”, porque implica sempre uma perspectiva etnocêntrica e uma assimetria de poder, onde “nós” nos colocamos como salvadores dos “outros”, os chamados “sem voz”, mas a verdade é que estes “outros” sempre tiveram voz e palavras; voz e palavras que “nós” de vez em quando silenciamos, negligenciamos, marginalizamos, estigmatizamos. Pessoalmente, prefiro dizer que ouvi. Há uma anedota que considero muito significativa na minha experiência e que diz respeito precisamente a esta dinâmica. Quando comecei a me interessar pelas histórias de vida das mulheres das comunidades onde fazia minhas pesquisas, acreditava que como homem não teria acesso à dimensão mais íntima de suas experiências, mas foi o contrário. Um dia uma mulher me parou na rua me repreendendo porque eu ainda não tinha ido na casa dela ouvir a sua história, a história que ela tinha para me contar. Por fim, outra mulher me disse que nenhum homem jamais se interessou por suas palavras, por suas histórias, porque todos sempre se interessaram apenas por seu corpo. O fato de eu ouvi-las foi um fato sem precedentes. Mas não lhes dei voz, não lhes dei as palavras. Eu apenas ouvi e relatei o que elas me disseram.

Arnaldo Cardoso, sociólogo e cientista político formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pesquisador, escritor e professor universitário.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para dicasdepauta@jornalggn.com.br. A publicação do artigo dependerá de aprovação da redação GGN.

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